quinta-feira, 24 de fevereiro de 2005

PÂNICO NA "DEUS É AMOR"

A notícia chegou rápido. Do alto da rua, de frente de casa, se via a aglomeração de curiosos. Sirenes policiais, populares comentando. O circo estava armado. Curioso, no auge de meus 14 anos de idade, não podia deixar de participar da muvuca. Ao chegar lá, ouvi os boatos. Um homem armado e embriagado havia entrado na igreja “DEUS È AMOR” e disparado um tiro pro alto. Houve gritaria. Mulheres pularam a janela. Crianças foram arremessadas contra cerca. Irmãos no canto da cerca, ao fundo da igrejinha de madeira, oravam.


“Já tava cantando ‘SEGURA NA MÃO DE DEUS... E VAI’”!

Do outro lado, vejo dois amigos, quem chegam correndo até mim:

- CREIÇO, SEU PAI ENTROU AQUI E DEU UM TIRO PRO ALTO !!!


“Caralho”, pensei. Imediatamente fui pra casa com receio de represálias da vizinhança. Comecei a rir como qualquer moleque sem noção da minha idade, mas no fundo, claro, estava preocupado. O que levaria o SR. Nicodemos, o Seu Nicó, um homem tão calmo e gentil, a entrar numa igreja “causando”?!

Em segundos os policiais buzinaram na frente de casa. Eu estava só. No banco da frente (!) da viatura, meu pai dormia que babava. Tão bêbado que não sabia nem quem era.

- Boa noite. Você é filho deste senhor?
- Sim. Podem levá-lo.


O que eu poderia fazer? Meu pai tinha de saber que ele fez uma coisa feia e tinha de pagar por isso. Foi isso que ele me ensinou a vida inteira. Em minutos minha mãe chega em casa. Ficou orgulhosa com minha atitude. Cerca de três horas depois, os policiais voltaram com meu pai e inexplicavelmente o deixaram em casa. Alegaram réu primário de boa conduta (!!!). Disse que só fez porque estava embriagado e que como ele era conhecido, e todo mundo sabia que ele não era disso, estaria liberado.

No dia seguinte, meu pai não se lembrava de absolutamente nada. Seus amigos, deram a versão oficial dos fatos, que até hoje é motivo de gozação na cidade.

Seu Nicodemos trabalhava de madrugada e precisava dormir durante o dia. A igreja ficava do lado de casa. A emoção dos fiéis, que gritavam freneticamente não o deixavam dormir à tardezinha. Nicó foi até a igreja e pediu para rezarem mais baixo. Pedido não atendido. Pai volta pra casa e enche a cara. A reza continua. Ele pega seu 38 e vai até a igrejinha. Suas palavras são proféticas:

- REZA BAIXO SEU BANDO DE FILHOS DA PUTA. JESUS NÃO É SURDO! ESTOU TENTANDO DORMIR, PORRA. AGORA VOU DAR MOTIVO PRA VOCÊS GRITAREM ... [aponta a arma para o alto e dispara]

Meu pai ficou uma semana sem falar comigo quando descobriu que eu mandei a polícia levá-lo sem tentar convencer os guardas a liberá-lo. A imagem abaixo circula há algum tempo na net. Como assim? A frase é do meu pai, caralho!


Seu Nicodemos se envergonha disso até hoje. Após o incidente, vendeu todas as armas que tinha. Na terra de ninguém, absurdos como esse acontecem todos os dias. São tão banais que deixam de ser relevantes e punidos de forma correta. Condeno toda e qualquer forma de violência. Independente de quem seja.